Exmos Senhores,
Antes de mais, gostaria de vos saudar com um profundo bem-haja pelo trabalho que têm vindo a desenvolver na Assembleia da República. Voto desde que tal me é legalmente permitido e é com orgulho que não engrosso as fileiras da abstenção: todo o vosso trabalho deve ser louvável pois está ao serviço deste país que é nosso.
Ouso dirigir-me a V. Exas no sentido em que o vosso trabalho é também para mim, cidadã comum, que vos elegi, elejo e elegirei, que contribuo arduamente com os meus impostos (informo que trabalhando no sector privado já há muito tempo que dou a meia hora a mais que agora o Governo pretende implementar), e que usufruo com recatada parcimónia do chamado Estado Social.
Passando este preâmbulo, é noticiada pela Renascença a proposta do Governo cortar com os feriados de 5 de Outubro e de 1 de Dezembro. A contrapartida seriam outros dois feriados concedidos pela Igreja Católica, após acordo com o Vaticano.
Meus senhores, a não ser que eu esteja enganada, estamos num estado laico. Laico, por definição, implica que este país à beira mar plantado, de seu nome Portugal, não se rege por qualquer organização religiosa. Compreendo que historicamente a tradução da laicidade na supressão de feriados seja particularmente penosa e pouco diplomática. Não esqueço, também, que o impacto comercial de feriados religiosos: basta ligar a TV e deliciarmo-nos com anúncios da Popota, da Leopoldina e de promoções de natal e o esforço não será grande para conseguirmos recordar os ovos da páscoa a pulular na TV, acompanhados dos respectivos e amorosos coelhinhos. Sei que este impacto comercial se traduz também no momentâneo aumento de algum emprego temporário.
Mas como pode o Estado afirmar-se laico e desprezar outros dias santos de outras confissões? A tradição judaico-cristã que nos define não é esclarecimento cabal a esta questão uma vez que, meus senhores, somos cada vez mais um melting pot, com as vicissitudes positivas e negativas que advêm de tal facto. Ou seja, parece-me lógico que, exceptuando o natal, os outros feriados religiosos católicos deixaram, há muito, de ter razão para existir que não a mera perpetuação de uma tradição com a qual a maioria do país se não identifica. De facto, apesar de sermos um país maioritariamente católico, este aspecto não se traduz numa fé efectivada nos rituais da Igreja mas sim numa falaciosa designação de católico "não praticante". Além de que a manutenção do estado actual das coisas discrimina de forma inexplicável, para um país laico, as restantes confissões que têm vindo a proliferar de forma pronunciada.
Escrevo isto e sinto a necessidade de vos esclarecer: sou católica praticante e, consequentemente, o estereótipo levar-vos-ia a concluir que estaria contra a abolição de feriados religiosos. Mas o que tem protegido o 8 de dezembro a ver com a produtividade do país? O 8 de dezembro, antigo dia da mãe, corresponde na verdade a um dos dogmas da Igreja, a imaculada concepção de Maria, e esta fé em nada deve reger a política do país. Sejamos sérios, é o apelo que vos faço! Sempre gostei do feriado de 8 de dezembro, o meu avô fazia anos nesse dia e tem para mim um significado especial. Mas não o tem para milhares de portugueses.
Como podem V. Exas ponderar sequer a abolição do 5 de outubro, feriado da implantação da república! Ou o 1 de dezembro que, apesar de não se inserir de forma positiva no actual contexto global europeu, traduz a data da restauração da independência e da soberania de um dos países mais antigos do mundo! Não compreendo como pode sequer surgir esta proposta. Compreendo os sacrifícios que nos pedem (alguns deles, apenas alguns), mas tamanha falta de sensatez e não entendo e não aceito!
Vivemos numa altura em que pouca gente sabe o que significam os feriados, nada mais são do que um dia de não ir trabalhar (ou um dia de pagar a dobrar aos funcionários, quando se vai trabalhar). E é vergonhoso e, a verificar-se esta situação, V. Exas contribuirão lamentavelmente para que se perca um pouco da nossa História. Que se perca o 1 de novembro, o 15 de agosto, a sexta-feira santa e o corpo de Deus, mas abolir os feriados que contribuem para a nossa identidade?! É de uma inconsciência indizível e nada patriótica, se me permitem acrescentar.
Exmos Senhores, reitero todo o meu respeito pela Assembleia da República.
Certamente compreenderão que tenho a minha orientação política mas creio já vos ter demonstrado que não gosto de me ver inserida em conceitos estereotipados. Como escrevi, sou votante, sou cidadã, defendo o meu país e sua História. Sou também católica mas defendo um estado verdadeiramente laico.
Desta forma, endereço-vos esta carta aberta pois só V. Exas podem evitar uma vergonha desnecessária na história deste país.
Na certeza de terem V. Exas em consideração esta opinião, e na esperança de ver restaurada a minha fé na instituição que é Assembleia da República, que por vezes parece ser um lamentável número de discursos ensaiados em vez de se preocupar com os eleitores que vos colocaram nesta posição que deve ser humilde e de serviço, apresento a V. Exas os meus respeitosos cumprimentos,