O PRÉVIO
Dia 11 de fevereiro, sábado, começaram os primeiros sintomas, uma febre ligeira, uma dor de garganta e pouco mais. Dia 12, domingo, não se saiu da cama, e dias 13 e 14 foi-se, pouco inteligentemente, trabalhar em campo, onze andares num edifício sem ventilação, todo o percurso feito a pé. Uma sede imensa, mais do que fome e uma tosse corcunda vinda das profundezas que julguei não ter.
Claro está, dia 14 de fevereiro, dia dos namorados, depois de ter entregue dois bilhetes para Dream Theater à metade, fui por pata própria para as urgências do Hospital S. Francisco Xavier. Hora de entrada: 21h37m. Começava a saga...
S. F. X.
Quando entrei pelo posto de admissão não falava. Um ataque de asma como não tinha em décadas permitiu-me o acesso directo à triagem, e uma saturação de oxigénio de 84% deu para entrar directamente nas urgências laranjas, acompanhada pelo enfermeiro da triagem que só me largou quando me viu com uma máscara de oxigénio e um acesso no braço esquerdo. E água, muita água, que eu só sentia sede.
Quando a médica me veio ver, recomendou aerossóis e muita calma. Logo, lá fui para a sala dos inalatórios levar com salbutamol (ou combivent ou lá o que era). Era eu e mais uma dúzia, uns já a dormir e ressonar, outros nem por isso. A expectativa: estabilizar a respiração e ir à minha vidinha, como sempre acontecera até aqui.
Às auscultações seguintes entendi que algo diferente se iria passar desta vez. Ao longo da madrugada tentei evitar ao máximo as gasimetrias (nunca tinha feito nenhuma, mas explicaram-se que era uma colheita de sangue arterial, no pulso, e a descrição foi o suficiente para entrar em pânico) mas a saturação de oxigénio não melhorava e às 06h disseram-se que só sairia dali com uma gasimetria decente. Acedi. Devo avisar que fui completamente apanhada de surpresa e a minha primeira reacção foi a de tentar (mentalmente, claro) esmurrar a médica das urgências. Doeu, pois claro que doeu. Ao fim de três minutos, o resultado: mais aerossóis porque a gasimetria não estava famosa. Resumindo, não ia sair dali tão depressa.
Às oito da manhã, depois de ter utilizado todas as estratégias que me lembrei (contar de três em três de forma invertida), as gasimetrias tornaram-se suportáveis quando feitas à primeira, mas com a mudança de turno as competências entretanto adquiridas sumiram-se. Colhidas as hemo e uroculturas, e por uma questão de espaço, mandaram-me para a sala de reanimação (a REA). É dos sítios mais pacíficos para se estar, embora se corra o sério risco de ter de ir avisando que ainda estamos vivos. Foi por esta altura que desisti de tentar controlar a dor das gasimetrias. A única solução que me davam era oxigénio e aerossóis e, mesmo assim, nada de melhorias. Cada gasimetria era a porta de saída do hospital e, ainda que a saturação do oxigénio medida digitalmente fosse melhor que os 84 de entrada, a gasimetria acabava por me tramar.
Pela hora de almoço transferiram-me para a Sala de Decisão Clínica, onde comecei a sentir-me profundamente cansada. Apesar de não ter dormido desde as 07h da madrugada anterior, não tinha descansado, mas o meu estado era mais de prostração do que de sono.
A meio da tarde chegou (ao pé de mim) a pneumologista. Depois de algumas impressões, continuávamos a depender das gasimetrias e não entendiamos o que se passava. O RX estava relativamente normal, mas havia ali alguma coisa que não batia certo. Comecei a perceber que tinha sido bastante sensata em ter permitido as gasimetrias (apesar do pânico de furinhos no pulso). Não estava a respirar melhor, mesmo com o oxigénio a 12 l/h e, pior que isso, o meu estado começou a piorar. À noite fui transferida para o serviço de pneumologia do Hospital Egas Moniz. Levava um lençol pelas costas e uns chinelos de papel, um frio de rachar, e oxigénio na cadeira de rodas.
H. E. M.
Cheguei à pneumologia pelas 23h de dia 15 de fevereiro, com o piso quase todo a dormir.
Quando cheguei não tinha nenhuma terapêutica prescrita, pelo que passei sem respirar decentemente (sem me poder queixar, estava ligada ao oxigénio, certo?, de falta de ar não morreria) e com febre. Delirei com um livro da JB Fletcher (do Crime, Disse Ela), sendo que tive uma agradável conversa comigo mesma sobre o marido da senhora e como esta se tornou autora de romances policiais. Esperava ao menos não ter incomodado a senhora que dormiu no mesmo quarto que eu e que, como se verá, se tornou numa das pessoas mais importantes desta história.
Pela manhã tinha mais de 39ºC de febre e não dormia há mais de 48 horas. Aprendi um respeito muito diferente pelos médicos e enfermeiros que se aguentam tantas horas seguidas.
Vi a médica que ficou com o meu caso e começámos a tentar entender o que se passava. Aliás, começou ela, eu já mal falava e cada respiração me parecia cada vez mais pequenina. Quanto à gasimetria, nada melhorava e o oxigénio prescrito aumentou.
Deram-me banho, porque apesar de ter ficado no quarto mais extremo do piso, nem de cadeira de rodas tinha força para ir à casa de banho (que ficava a uns míseros 3 metros). Tornei-me competente no uso da arrastadeira, embora o simples sentar-me fosse um cansaço extremo. A febre não baixava e começaram a dar-me, entre outras coisas, um antibiótico fantástico, de seu nome claritromicina, a que apelidei Clarinha dos Vidrinhos. Pareciam vidrinhos a entrar pela veia dentro. Ao fim de um par de horas, os acessos do braço inchavam e tinha de ser picada novamente. Portanto, além das gasimetrias que alternavam nos pulsos, os braços começaram a ser fustigados. Devo acrescentar que os enfermeiros, com uma paciência absolutamente louvável, conseguiram pôr-me tantos catéteres nos braços como os 15 dias que estive internada e nem um deles doeu mais do que o necessário. Além disso, a minha médica provou-me que as gasimetrias não têm necessariamente de ser torturas medievais, de tal modo que à primeira que me fez no pulso direito a minha vontade era de a abraçar de tão pouca que foi a dor que se me assomou.
Ao segundo dia o delírio febril tinha a ver com palavras frescas (não é para ter sentido) então passei a noite com a máscara de oxigénio a repetir "basílio fresquinho". Continuei sem dormir e de madrugada a médica começou a assustar-se com isso. Novo RX, amostras de sangue e fisioterapia respiratória. Mais uma vez sem me levantar da cama, novo banho de bacia e a gasimetria sem melhoria substancial.
Entretanto comecei a tossir sangue. Sim, é nojento, mas na altura pareceu-me mais preocupante que nojento. A médica começou então a colocar todas as hipóteses patogénicas e mais algumas, incluindo tuberculose e afins. Aí sim, posso dizer que comecei a ter medo da seriedade da coisa. Até aí acho que a febre me tinha tornado inconsciente.
Fiz novo raio X e este revelou uma pneumonia bilateral que, dado o estado de desidratação em que entrei nas urgências do São Francisco Xavier, não foi então detectada. Finalmente, um diagnóstico. O problema era que a medicação não funcionava como devia. Fizemos um primeiro estudo alergológico e tive a primeira das más notícias, era alérgica no pior grau possível ao meu coelho, Pimpão. Nas palavras da médica, a coabitação era impossível mais do que indesejada.
Não foram identificados agentes patogénicos nas culturas nem nas colheitas entretanto feitas. Entretanto, mudei de colega de quarto por duas vezes e nenhuma se comparou à D. Isabel. A segunda senhora tinha-se lesionado em St. Tropez e "aquilo é que era vida", de tal forma que enquanto me trocavam os cateteres de madrugada, ela só dizia que queria pasteis de Belém e bolas de Berlim, muito indignada por ninguém lhe atender aos pedidos. A terceira senhora foi-me profundamente indiferente. Quem teve o privilégio de conhecer a D. Isabel acaba por não se contentar com pouco.
Feita a TAC, chega a segunda notícia esquisita, tenho uma lesão estranha no pulmão por detrás não sei do quê. Apesar de ter tido uma broncopneumonia quando era bebé, não há (ainda hoje) certeza se é residual dessa altura ou se deriva de algo mais recente, como esta pneumonia. Saber o que se passa torna-se uma prioridade para sabermos se há ou não que retirar parte do pulmão.
E foi aqui que quebrei completamente. Chorei uma noite inteira, com medo, com raiva de ter de ter dado o Pimpão, de não perceber o que se estava a passar (que ingenuidade e pretensão, as coisas simplesmente acontecem), de não saber o que ia acontecer. Vi o que a notícia fez aos meus e tentei, de todas as formas, não transmitir o meu receio. Mas a verdade é simples: fiquei completamente aterrorizada.
Passado o fim de semana (não se fazem gasimetrias ao fim de semana), mais análises e uma nova estratégia terapêutica. Mudaram os antibióticos, alteraram a cortisona, os analgésicos, os broncodilatadores, enfim, uma volta de 180º. E começou a resultar. Segunda-feira consegui ir tomar banho, embora fosse uma parvoíce, porque me ia dando um badagaio apesar de tomar banho sentada e com oxigénio. Mas consegui deixar a arrastadeira, o que foi um verdadeiro marco. Apesar de continuar a oxigénio, a respiração tornou-se mais fácil e os períodos de prostração e cansaço eram menores.
Entretanto morreram pessoas, chegaram novos doentes, e o ciclo recomeçava.
Li dezenas de livros, uns melhores outros nem por isso, mas como não havia TV no quarto, os Óscares passaram-me ao lado, a morte do homicida de Beja passou-me ao lado, enfim, estive desligada do mundo e da crise. Aos poucos consegui ir fazendo uma existência mais autónoma. Com alguma medicação mais forte, conseguia dormir 3 horas seguidas. Depois dormia de tarde, de manhã, quando me dava para isso. Os meus braços ainda hoje parecem medonhos, de tão roxos que ficaram (Biafine, muito Biafine). Não consegui escrever até ao final do dia de ontem, porque qualquer esforço (como abrir um comprimido) me custava horrores. Segurar o chuveiro era uma aventura. A única coisa que consegui competentemente aprender sozinha foi aplicar o doce no pão, mais por gula do que por fome.
DEPOIS
Aos poucos melhorei. Tive a nota de alta hospitalar no dia 29 de fevereiro, 15 dias depois de ter entrado nas urgências. Farei fisioterapia respiratória pelos próximos meses, com uma terapeuta que fez comigo o primeiro ano de faculdade (e depois mudou então para Fisioterapia) e que é das pessoas mais competentes que há na área (segundo a pneumologista). Tenho exames para fazer quase até meio do ano, repetirei TAC e farei provas de esforço respiratório durante o próximo mês. A medicação permanente que agora tenho é, precisamente isso, permanente e não pode ser adiada sob qualquer pretexto. Tenho 31 anos e vou reaprender a respirar. Passei a aindar com uma garrafa de 1,5 l de água para hidratar a via aérea. Tenho consulta de pneumologia para daqui a um mês e meio e tenho indicações estritas para me dirigir às urgências ao mínimo sinal de perigo.
Depois de duas semanas e um dia deitada, custa-me a andar. As dores musculares e o cansaço acabam por me impedir de aproveitar o facto de conseguir ver o sol ou as nuvens duas semanas depois de ter como única paisagem o edifício das consultas externas. Nunca pensei que as pernas me doessem tanto, e por mais que me esforce para pensar que isto vai ao sítio, devo acrescentar que o cansaço muscular ultrapassa, em muito, o cansaço respiratório. Vai demorar até me voltar a sentir inteira e capaz. Estou mais redonda, efeito da cortisona e de comer como um abade (comia de 2 em 2 horas no internamento). Mas quando as pernas deixarem, voltarei às caminhadas. Corridas não prometo, mas posso pensar nisso.
Guardei um nariz vermelho da Operação Nariz Vermelho, que nos visitou no Carnaval. Parece-me quase simbólico guardar um sorriso arrancado num contexto tão difícil, mas far-me-á bem quando a memória estiver mais esbatida.
OS OUTROS
Ao contrário do que gostaria, não tinha deixado completamente de fumar. Desde dia 13 que, obviamente, não toco num cigarro, e, desta vez, a parte pior do processo foi passada no internamento, onde a vontade de fumar era pura e simplesmente inexistente. Mas independentemente da racionalidade da decisão de não voltar a tocar num cigarro, esta deve-se sobretudo à D. Isabel.
Não sou particularmente purista, muita gente fuma à minha volta. E terá consequências disso, como eu as tive e ainda poderei ter. E mesmo assim, fumamos. Quase parece poético.
Quase. A D. Isabel nunca fumou na vida e no ano passado esteve mais tempo internada com uma infecção pulmonar do que em casa. Desde 2004 que tem uma infecção que não lhe dá descanso. Usa para dormir um aparelhómetro que parece uma tromba e que lhe fornece oxigénio de forma mais eficiente que os óculos nasais ou a máscara.
Apesar disto, é uma pessoa serena e a ela devo muita da calma necessária para conseguir levar os tratamentos até ao fim sem entrar em pânico. Tranquilizou-me quando comecei a cuspir sangue, quando me acordavam de madrugada para tirar sangue, quando a claritromicina começava a inchar-me os braços, quando comecei a entrar em desespero. Sobretudo, ensinou-me que a vida é, ponto. Não tem uma ponta de auto-comiseração ou de irritação por padecer de algo que, provavelmente a matará antes de tempo, e para a qual não contribuiu em nada. Caramba, andei eu a fazer disparates aos meus pulmões conscientemente e a minha doença não tem um décimo da gravidade da dela. Até eu acho injusto e revoltante, mas a D. Isabel já fez as pazes com as injustiças deste mundo. Quanto mais não seja por uma questão de respeito pelas D. Isabeis deste mundo, dificilmente fumarei um cigarro novamente...
Esta história não ficava completa sem um pensamento para os enfermeiros e auxiliares, para a Graça e restantes elementos do piso 2 do HEM. Com a escassez de recursos que há, conseguiram sempre uma palavra amiga, dedicada e competente.
O mesmo se aplica à minha pneumologista, paciente e clara, ao meu médico de família, que tentou inteirar-se da situação com o interesse e o acompanhamento a que já não estamos habituados.
Além disso, claro, a minha saída premeia sobretudo a minha família e os meus amigos, que tentaram, na medida do humanamente possível, acompanhar-me neste processo que foi bem mais doloroso do que aqui consigo escrever.
Este é dos posts mais pessoais que já escrevi e escreverei. Não serve para nada, reflecte unicamente o tanto que foi esta passagem por uma experiência que espero não repetir, mas da qual seria ingrata se não retirasse os ensinamentos que agora carrego.