espaço de mau feitio, alguma reflexão, música e outras panóplias coloridas

30
Jan 13

 

Entrei em Psicologia porque não tinha outra opção. De verdade, eu sou do tempo em que as candidaturas eram feitas em papel, seis opções, e eram entregues numa escola secundária (no meu caso, a Delfim Santos, embora não tenha nada a ver com a minha residência). Não tinha outra opção nem outra faculdade: das seis opções, concorri apenas àquela: Psicologia, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Estávamos em 1998.

Até aí, estava convencidíssima que iria seguir Biologia Microbiana e Genética, tendo até ido à FCUL buscar o programa do curso, as cadeiras e toda a informação relevante. E depois tive aulas no secundário com um professor de Psicologia que é psicólogo. E isso fez toda a diferença.

Na minha opinião, este deverá ser um dos grandes combates da Ordem dos Psicólogos, garantir que são psicólogos a leccionar esta disciplina, e não licenciados em filosofia. Não tenho nada contra professores de filosofia, quando estão a dar Filosofia (um bem-haja à professora Filomena Gamelas, a mulher do "não é?", que ainda hoje tem espaço na minha memória).

Então tive umas quantas aulas de Psicologia e fiquei confusa, a Biologia e os genes a afastarem-se do horizonte, e Psicologia a parecer uma opção engraçada.

Portanto, eu não fui para Psicologia desde pequenina.

A responsabilidade, repito, é do professor (António Baia de seu nome), que me cativou e mostrou um lado da psicologia que me fez querer saber mais. Fui para saber mais, por curiosidade. No dia da inscrição assinalei apenas aquela opção, de modo que nunca soube, nem quis saber, como seria a minha vida se tivesse seguido Biologia.

Como referi algures, o primeiro ano foi terrível. Mas fez-se. O segundo também. Algures entretanto apareceu a Psicologia Social (pelas mãos do Zé Manel Palma-Oliveira, a coloquialidade é fruto de um respeito pelo estilo do homem). Tudo é atitude. Nunca me vou esquecer desta frase. Em psicologia, tudo é atitude. Redutor, claro, mas com um impressionante fundo de verdade: as atitudes e suas componentes emocionais, cognitivas e comportamentais, moldam e são moldadas pela nossa experiência. Psicologia Social era a minha praia. Devo esta casa à Ana Santos, que estava a dar-nos aulas antes da gravidez e a tirar o mestrado e ao professor Leonel, cativadores de sonhos, que me fizeram sonhar com o doutoramento orientado pelo David Hamilton ou pelo Dan Gilbert.

Portanto, eu não fui para Psicologia para ajudar os outros. Eu queria entender os outros.

No quarto ano do curso podíamos protelar umas semanas as áreas em que iríamos prosseguir os estudos. Na altura eu estava vidrada em psicologia social. Nem me passava pela cabeça seguir a área clínica, quer dizer, pelo amor de deus, nem pensar, não tinha paciência. A primeira aula de psicologia da área social foi psicossociologia do trabalho (ou um pavor qualquer do género). Nunca apanhei uma seca tão grande na vida. Que desânimo, oh desilusão, que horror! Hoje assumo que posso ter sido exagerada na altura, mas foi mais forte do que eu: inscrevi-me em clínica na área que tinha "cognitiva" no nome (e "toda a gente sabe que" psicologia cognitiva mete processos cognitivos, pensava eu ingenuamente). Nem ponderei as outras opções (psicologia clínica dinâmica e psicologia educacional). Portanto, na área clínica eu decidi inscrever-me em todas as optativas da área social. Coisas boas, como Cognição Social e Temas de Memória Humana. A tal ponto que cheguei a estar na faculdade antes das 08h da manhã para me assegurar que a apresentação do trabalho de CS corria bem (sobre Gilbert & Hixon, 1991). Na faculdade sempre fui conhecida como noctívaga e, lá está, às 08h estava a bater continência para cognição social. E o trabalho correu bem.

Mas enfim, estava em clínica e tive de estagiar em Clínica. E no 5º ano aconteceu. Comecei a dar sessões. E clique.

Portanto, foi preciso chegar ao estágio para saborear a grandiosidade e a arte da psicoterapia.

Não que tivesse sido um estágio bom. Ou belo. Foi um estágio que me ensinou que nada sabia.

Terminada a licenciatura, a 30 de Outubro de 2003, devo acrescentar que sempre acreditei e fui educada a crer que do mérito nasce o sucesso. Do esforço, do empenho, da dedicação.

Integrei um projecto de investigação de psicologia social ligado ao Euro 2004. Só recrutaram psicólogos da área de social, de várias universidades do país. Eu fui a única de clínica a entrar no projecto.

Continuei a estudar, primeiro na APTCC e depois em mestrado. Em psicoterapia, não em social. Foram precisos quatro anos, mas estava rendida.

No entanto não era fácil singrar na área: nunca tive bolsa, embora a minha mãe fosse a única a comparticipar nos estudos (creio que tenha sido preterida na atribuição de bolsas por ter mantido a área de residência em detrimento de quem se deslocou para estudar), e o meu trabalho consistia num call center que pagava tarde e a más horas e em pouquíssimas consultas. Durante a licenciatura cheguei a estar em casa meses a dormir num colchão e sem qualquer mobília porque venderamos os móveis todos e não tínhamos dinheiro para comprar outros. Enviei CVs às toneladas, milhentas cartas para estabelecimento de parcerias (sindicatos, bombeiros, tudo). Nada. Fui ao Ministério da Educação saber porque não podia dar aulas de psicologia nas escolas (aquilo que, como escrevi, deve e pode ser uma tarefa premente para a Ordem dos Psicólogos). Nada. Concorri a concursos públicos (sim, era muito cheia de mim e sobretudo, muito ingénua). Via colegas a montar consultórios, clínicas, enfim, fruto de empreendedorismo e de recursos parentais e familiares que eu não possuía. Sem inveja, atenção. Mas com pena.

E depois a minha mãe ficou sem emprego.

Fui trabalhar para o Pão de Açúcar, como vendedora de informática, actividade que tinha quando iniciei este blog e que é responsável pela etiqueta de "abertura" (horário das 08h às 17h). Trabalhar por turnos, desconhecer fins de semana, ganhar 500 euros, enfim, a minha vida tornou-se algo incomportável com o prosseguimento dos estudos. Deixei o mestrado e deixei a APTCC. E deixei a psicologia. 

Entretanto, surge a Ordem em todo o seu esplendor.

Candidatei-me. Claro. Psicologia não é meramente um curso que tirei. Eu sou psicóloga. Faz parte de mim, e é difícil acreditar que a polémica que inicialmente envolveu a OPP tenha passado totalmente. Na minha humilde opinião, a OPP deveria inicialmente ter regulado e regulamentado as especificidades e curricula dos cursos de Psicologia, que entretanto proliferaram estupidamente. Mas optou por outro caminho, da experiência profissional, o que faz sentido, embora possa ter deixado de fora profissionais que o não mereciam.

Eu não sei se o merecia, mas fruto de sempre ter passado recibos das sessões, consegui demonstrar actividade profissional suficiente para ser membro efectivo e estar dispensada de estágio profissional de acesso à efectividade (outro dos grandes desafios que actualmente enfrentamos: neste momento, estágio equivale quase a sempre a trabalho mal pago ou não remunerado sequer, não obstante a duvidosa legalidade da situação). Mas não o merecia mais do que a Rute, que se licenciou ao mesmo tempo que eu e hoje trabalha num balcão da CGD. Ou que a Sónia, que chegou a ser assistente administrativa no Egas Moniz. Ou mais que tantos outros que agora, sendo psicólogos, não o são.

Regressar à psicologia esteve sempre presente. Sempre tive consultório, e mesmo actualmente quase que tenho mais prejuízo do que lucro. Formação contínua tem sido um desafio, não por falta de oferta, mas por carência de recursos (dinheiro, portanto). Como disse, parto 6a para o Porto e vou a contar os tostões. Já vi congressos e seminários para este ano, anotei-os na agenda, mas não sei se terei disponibilidade para tal. Mais as quotas da Ordem. Supervisão, que para mim é essencial, também está difícil. Pesquisei, enviei dezenas de e-mail e os preços são assustadores. Conto até Abril resolver esta questão.

É difícil ser psicólogo em Portugal. Quase apetece desabafar que é preciso ter dinheiro para exercer. E sorte. Tenho respondido para anúncios de fugir a sete pés.

Mas desta vez, ao invés do que quando terminei a licenciatura, não desisto. Furo o que for preciso. Futuro adiado por futuro adiado, vou à luta, tenho 32 anos e não os 23 que tinha em 2003. Ganhei resiliência e acarinho cada experiência profissional que tive, porque cresci.

Portanto, fui para psicologia para ser psicóloga.

publicado por Vita C às 15:25
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9 comentários:
Fala das dificuldades que as colegas enfrentaram para verem reconhecido o seu estatuto de psicólogas. Infelizmente, hoje em dia não vejo grande diferença, ainda que noutros moldes: parece que é mais difícil encontrar estágio profissional do que emprego. É incrível o sentimento de frustração face à barreira que se cria entre o término do curso e a vontade de começar a trabalhar, por causa da existência do estágio profissional, pela inexistência de oportunidades à sua realização.
Pessoalmente, andei dois anos à procura de estágio profissional. No segundo ano de procura, com a candidatura paralela ao estágio do iefp (para me assegurar o financiamento do outro estágio) estive durante esse mesmo ano à espera de aprovação e não pude trabalhar (legalmente) se não a candidatura deixaria de ser considerada. Sim, esta ultima parte coube ao estado, mas penso que a OPP também tem aqui responsabilidade na articulação com o mesmo.

Entristece-me ler isto, escrito há 6 anos atrás, e identificar-me a uma realidade que parece não ter sido actualizada. Os desafios com que me deparo hoje em dia (como psicóloga oficialmente há dois anos e meio, depois do estágio profissional) são os mesmos.
Mais, fala dos custos da supervisão, mas eu acrescento a terapia pessoal, supostamente imprescindível (mas financeiramente incomportável) para exercer e, claro, o curso de psicoterapia - rico para a formação contínua de quem faz psicoterapia e para o psicólogo poder dizer que faz psicoterapia (ainda que a formação académica, a experiência clínica e a supervisão permitam o que na prática é efectivamente uma psicoterapia).
Só em supervisão e psicoterapia pessoal estamos a falar de um custo de 400 a 500 euros por mês na melhor das hipóteses.

Lamento verdadeiramente esta realidade.
Carolina Pequeno a 15 de Dezembro de 2019 às 01:03

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