Exmos Senhores,
Como todos sabemos, o Euromilhões não é um sorteio aleatório. Ainda não descobri como, se com chumbinhos pesados nas bolas que querem que saiam, se com gestos ocultos aquando da inserção das ditas esferas na tômbola, mas sei que os senhores, cuja identidade deverá, como qualquer outro mito, permanecer anónima, influem no resultado do sorteio.
Eventualmente, munidos da ubiquidade característica, verdadeira em quem manda e imaginada em quem pensa mandar, escrutinam V/ Exas os pensamentos catárticos ou sonegados dos apostadores, mesmo até os que os próprios desconhecem, de tão imersos no seu íntimo e tapados com pueril vergonha. Os senhores saberão de cor todas as promessas vãs de cada um de nós, confessos apostadores, em como ajudaremos o próximo, contribuiremos para uma qualquer obra social que o governo teime em deixar inacabada, compraremos comida e agasalho e tectos confortáveis para sem-abrigos, desenvolveremos lares adoptivos para crianças, alimentaremos animais abandonados, preservaremos a floresta amazónica e os habitats de espécies das quais nunca ouvimos falar. Vãs promessas porque assim que os apostadores se apanham com a moeda na mão, o guito, por assim dizer, não vos escandalize este termo coloquial, passam a ver um espelho à sua volta e apenas reflectem os seus merecidos desejos.
Ora pela presente venho comunicar-vos a minha candidatura a vencedora do Euromilhões, em conjunto com a cara-metade, e para melhor apreciação da minha candidatura, descrevo em baixo, em franca sinceridade e aberto egoísmo, as minhas pretensões e despretensões.
1) Não pretendemos viajar para a Polinésia, nem para as Caraíbas, nem para os Barbados. Eventualmente iremos a Belfast, por uma questão de interesse histórico, e dada a elevada concentração mítica de ruivas e ruivos.
2) Não esbanjaremos o abençoado pé-de-meia em casa de campo e casa de férias e casa de praia e casa do dia-a-dia. Já escolhemos um bom local, ali para os lados da Baixa-Chiado, ou mesmo os arredores da Rua de S. Julião, ou da Rua do Alecrim, de modo a termos o Tejo a saudar-nos todas as manhãs e contribuirmos assim para a requalificação populacional da baixa pombalina. Contaremos, não obstante, com a V/ compreensão, e gostaríamos de passear por vilas castiças e rústicas de vez em quando...
3) Não deixaríamos de trabalhar, mas fá-lo-iamos com gosto e motivação acrescidas, nas áreas que nos dão prazer, e que seria o trabalho do homem se daquele este não retirasse gozo e proveito? Assim, eu abriria um centro de formação e ajudaria a diminuir o desemprego no país, e a minha metade, despreocupada como a conheço, envolver-se-ia num negócio com os amigos, de forma a garantir também o sustento daqueles que sempre, ou quase, o ampararam (além de mim, claro está!).
4) Teríamos um carro pequeno e versátil, económico e ecológico, movido a gás natural. Ele andará de bicicleta quando não estiver comigo, pois o dinheiro não faz milagres e ele não conduz.
Pelo atrás exposto, não exigimos um grande prémio de jackpot, nem mesmo o primeiro prémio como vencedores únicos. Apenas nos arrogamos o direito humano de querermos e solicitarmos que, de uma vez por outra, os Exmos Senhores, se dignem a olhar para o comum mortal não como apostador compulsivo (e ainda que assim fosse, a contribuição semanal para obras sociais deveria atenuar tal falta), mas como merecedor certo da atenção por parte de quem, por fios invisíveis ou mecanismos quânticos, põe e dispõe do destino.
Em suma, eu, Miss Me virtual, cujo autêntico e genuíno nome é do vosso conhecimento, tal como toda a minha obra, passada presente e futura, psicóloga por escolha, administrativa por desenrascança, e mais-que-tudo-da-Miss-Me, de por Vós conhecido pelas mesmas e inevitáveis razões, cozinheiro e bom garfo por opção, desempregado por arrastão, rogamos a V. Exas que apreciem os nossos motivos, razões e suposições, averiguem a sua veracidade, e competentemente nos façam chegar o resultado da vossa suprema e imprevisível decisão.
Sem outro assunto de momento, e antecipadamente grata pela atenção dispensada, subscrevo-me, enviando a V. Exas os mais respeitosos cumprimentos
[assinatura ilegível]
Miss Me