Dêem-me isto ao jantar todos os dias e sou (mais) feliz.
Não nutro grande simpatia por nuestros hermanos. Nem antipatia, subentenda-se, pois forço-me a dispensar-lhes a maior indiferença de que sou capaz. As razões são mais que muitas, nem por isso para aqui chamadas.
Ontem quando estava no autocarro espalhou-se uma família de espanhóis pela maioria dos bancos disponíveis. A matriarca podia até nem ter aberto a boca, pois as toneladas de laca, que sufocavam o cabelo inflexível e rígido, o batom vermelho e as argolas bem pesadas nas orelhas quase rasgadas denunciavam o estereótipo das dançarinas de sevilhanas que agora é moda contratar para eventos sociais e afins. A laca foi o que mais me fez confusão. Dava a sensação de que se poderia ter jogado ténis com a cabeleira da senhora sem a certeza de quem ganharia (mais a mais a Espanha conquistou a Taça Davis!).
Depois, como a minorar o meu pasmo, lembrei-me do nosso exilado voluntário mais ilustre. Desde 1993 que Saramago nos trocou flagrantemente pela ilhota de nuestros ladrones, perdão, hermanos. Não foi uma lembrança ao acaso, acabei de ler A viagem do elefante e Caim.
Saramago é, na minha mui humilde opinião, um escritor genial, já o escrevi diversas vezes. Não tendo o fulgor de se me enraizar como nos tempos d'A jangada de pedra ou d'A caverna, é sempre um prazer ler e reler as suas obras.
Quanto a Salomão e Subhro, Solimão e Fritz, que me ensinaram que "sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam", a viagem correu bem. Agora quanto a Caim, o que se passa com esta gente? Polémica? Indecência? Onde? Terão estes incomodados lido o Evangelho segundo Jesus Cristo, claramente a obra mais provocatória do nosso Nobel?
Que o senhor tem uma clara obsessão e uma necessidade insólita de morder os calcanhares da Santa Madre Igreja é notória mas, e daí? Não é de agora, encontram incidentes destes em toda a obra de Saramago. Será pelo título?
Não teremos todos um Caim abelizado dentro de nós, não seremos todos embaixadores desta púdica invergonha que deita demasiada lenha na fogueira de Saramago? Deixem-no estar e escrever, beijar a Pilar. É o que ele escolhe, e bem, fazer. O resto é laca e verniz estalado.